
O ACONTECIMENTO
Em uma encruzilhada, expandida para um jardim comunitário, um estacionamento e um viaduto, abre-se uma fresta na cidade para resgatar a memória de José Miranda Rosa, Mineirinho. Talvez se não fosse a crônica de Clarice Lispector, que segundo ela mesma é uma de suas obras preferidas, o pouco que se sabe sobre esse homem, considerado pelo morro da Mangueira como Robin Hood brasileiro, não teria chegado ao nosso conhecimento. A distância temporal, entretanto, não nos afasta da relação dele com nosso momento histórico. Independentemente dos delitos de José Miranda, a imagem de um homem morto com 13 tiros em uma chacina praticada por policiais no dia 1 de maio de 1962, segurando a guia de Ogum do pescoço, descalço sem suas alpargatas da marca “7 vidas” e com uma oração de Santo Antônio (no sincretismo associado a Exu) no bolso, revela um projeto colonialista que persiste até nossos dias.
A falta de registros históricos guiou a opção por trazer elementos da crônica e trechos das reportagens da época: um choque entre a poesia e a escrita sanguinolenta dos jornais à procura de consumidores ávidos pelo sangue impresso nas manchetes. A escolha dos jornalistas foi pela figura do criminoso, transformado em anti-herói, numa narrativa em que o questionamento e os porquês das causas dos crimes são esquecidos em favor do espetáculo sensacionalista. Já a crônica apresenta o olhar de uma classe média aliviada com a morte de um bandido e de uma artista, num movimento de autocrítica, que consegue sair desse modo operante e com assombro flagrar o que anos mais tarde chamaríamos de necropolítica. Sem nos apegarmos a necessidade de trazer à cena um documentário cênico propriamente dito, mas um ato permeado por elementos documentais, a celebração se sobressai ao policialesco.
Em nossa fresta/festa, propomos uma produção inacabada, com características explicitamente dialógicas, na qual as fronteiras entre quem assiste e quem produz ficam menos evidentes. Ao entendermos as pessoas como “verdadeiros” patrimônios culturais de seus tempos históricos, podemos visualizar que ao potencializar os espaços de trocas advindas de discursos cruzados, experienciados, abrimos possibilidades para a efetivação de variadas aprendizagens. A encruzilhada como espaço de conhecimento. A ode a figura do malandro, o resgate dos elementos presentes principalmente na Umbanda (porto seguro de Mineirinho), o samba, a reunião de atuadores, atuadoras e plateia num território reconstruído sob a ação da comunidade local, propõe um acontecimento no qual o encantamento de Mineirinho rompe com a narrativa hegemônica.
UM CRUZO DE ATUADORES E ATUADORAS
O cruzamento de corpos e diferentes experiências com o teatro foi outro elemento que queríamos trazer a cena. A Cia. Teatro Documentário selecionou entre os participantes das oficinas oferecidas ao longo do processo de pesquisa para criação cênica, profissionais teatrais, estudantes de teatro e pessoas que nunca tinham adentrado a cena para serem atuadores e atuadoras. Para nós, as atividades/manifestações teatrais são, sobretudo, lugares possíveis para a construção de conhecimento. Pensamos que não há como se envolver com teatro e não alargar o modo de enxergar o cotidiano e de significar novos conteúdos que antes, passavam despercebidos. O teatro “mexe” com todos os envolvidos em sua proposição fora ou dentro do ambiente escolar: atores, diretor, espectadores, aprendizes… Ao valorizar isso, é impossível não estabelecer uma perspectiva pedagógica dentro de um processo de pesquisa que não pode e não quer ter um fim mercadológico, mas pretende propor uma trajetória de desenvolvimento político e emancipatório por meio da cena.

























