Uma retrospectiva sobre como chegamos aqui… Um ano antes da formação da Cia. Teatro Documentário, em 2006, a maioria de seus integrantes já trabalhava junto e pesquisava as particularidades de um processo em teatro documentário, reunindo-se para discussões teóricas e construção/análise de cenas. Desde então, ficou claro que o modo de produção prezaria por relações de trabalhos horizontais e democráticas. O primeiro trabalho apresentado pela Cia. Teatro Documentário foi um estudo cênico intitulado Desde quando eu ainda era Travesti ou Lamento do Palácio das Princesas, , na série Experimentos do TUSP (2007).

O experimento de cunho documentário trouxe a trajetória de Luiz Laureano, que se travestiu aos 14 anos, depois passou um período na Europa se prostituindo e ao voltar ao Brasil decidiu tirar os seios e tomar hormônios masculinos para novamente se vestir de homem. Tomamos o relato de Laureano para discutirmos cenicamente uma afirmação feita por ele: é difícil ser mulher no Brasil. O olhar do travesti (homem) sobre a questão de gênero em nosso país foi o que nos impulsionou a construirmos o discurso cênico. Em seguida, voltamos à sala de ensaio e começamos a refletir sobre o que seria a documentação (em teatro) de um momento histórico.
Em 2008, nos inscrevemos na seleção de projeto teatral feita pela representação do Ministério da Cultura em São Paulo em comemoração aos 40 anos da geração 68. Dentre muitos grupos, com Consumindo 68, fomos um dos três escolhidos para a Mostra 68 – Utópicos e Rebeldes, realizada pelo Ministério da Cultura e Secretaria Especial dos Direitos Humanos, com o patrocínio do SESC/SP. Depois da estreia no Teatro Anchieta do SESC Consolação (julho de 2008), o grupo foi convidado para uma temporada no Espaço dos Parlapatões (agosto e setembro de 2008), além de participar também das Satyrianas/2008.
Em Consumindo 68, problematizamos cenicamente como os jovens atuais se apropriam dos ícones da geração de 68 como objetos de consumo. Com esse trabalho fomos considerados pela Revista da Folha do dia 31 de agosto de 2008, um dos quatro jovens grupos dignos de aplausos. No entanto, em 2010, com a observação de que quando chegávamos na casa de pessoas para coletar relatos, estas nos recebiam com uma mesa farta e cheia de histórias para contar, é que demos uma guinada em nossa trajetória.

Começamos a pensar em como utilizar de forma significativa o espaço da casa para apresentação. Como deve ser a preparação desse ator-documentarista para um contato tão intimista sem com isso perder o intuito de documentar? No meio dessas inquietações, observamos que esses possíveis encontros (entrevistas nas casas das pessoas documentadas, e posteriormente, apresentações das intervenções cênicas baseadas nos dados coletados) eram ações que poderiam ir de contramão ao isolamento característico dos moradores dos grandes centros urbanos. Percebíamos que a cidade, como casa, não propiciava esses momentos. O que nos restou foi a indagação: Como se pode brotar poesia na casa da gente?
Pela primeira vez… Surgiu assim o projeto homônimo que em abril de 2010 foi contemplado pela 16ª Edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Em nosso primeiro projeto, a Cia. desenvolveu uma pesquisa cujas práticas mais marcantes referiam-se às intervenções cênicas de caráter documental realizadas nas regiões leste, norte, sul e oeste da cidade, dentro de residências de pessoas dispostas a abrirem suas casas para apresentações teatrais. O documentário cênico, que partia do relato dos moradores sobre a rotina da casa e a relação deles com a cidade, era apresentado para a vizinhança e familiares. Depois de inúmeras ações que motivaram os encontros, foi na Casa do Teatro Documentário que, ao final do processo, centralizamos as lembranças de nossa vivência/trajetória pelos quatro cantos da cidade numa encenação intitulada Pretérito Imperfeito, que inclusive contou com a participação na última cena de Ivanil, documentado da Zona Leste. Com a Casa do Teatro Documentário, localizada no bairro do Bixiga, sendo espaço cênico para a encenação, frequentávamos a nossa rua e começamos a observar que ela e as imediações pulsavam em vida. A vivência reiterou, sem dúvida, nossa vontade de atuar em lugares para além de uma casa. Essa saída foi uma maneira de reconhecermos os arredores de nosso bairro como casa.

Em agosto de 2011, a Cia. Teatro Documentário foi contemplada pela segunda vez na 19ª Edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. A Cia. foi matéria de capa sobre teatro documentário no mundo publicada no Caderno Ilustrada do Jornal Folha de São Paulo do dia 17 de novembro de 2010, sendo citada como uma das primeiras a se dedicar exclusivamente a essa vertente no país. A opção do jornalista foi apresentar as propostas da encenadora Vivi Tellas da Argentina, de Stefan Kaegi, integrante do Coletivo Rimini Protokoll, e as nossas. As conversas com o jornalista para a realização da matéria nos motivaram a conhecer pessoalmente Stefan Kaegi, uma referência no nosso trabalho e que, por coincidência, estava no Brasil na época para o congresso da ABRACE (Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas). A partir desse encontro, Stefan se interessou por nossa proposta e nos convidou para participar como grupo observador de um festival que integra um projeto chamado CIUDADES PARALELAS.
Com o projeto intitulado Mapear Histórias, ou como disse Guimarães, o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia, intervenções teatrais de caráter documentário foram realizadas em quatro diferentes estabelecimentos comerciais localizados no bairro do Bixiga, nos arredores da Casa do Teatro Documentário: Salão de Beleza Extravagance, Bar Casa do Norte Guaxinim, Brechó da Delourdes e do Luís, Transportadora Penna – para uma plateia de convidados (vizinhança) e público em geral, no intuito de recuperar as histórias que as pessoas que convivem nesses lugares têm sobre o bairro, a rua e o próprio estabelecimento. Com a vivência e o material teatral e audiovisual coletados, elaboramos uma série de cenas exibidas numa mostra intitulada Vértice: cartografias cênicas sobre e para Maria José. Vale ressaltar que essa proposta apresentou uma radicalidade: os documentados abriram as portas de seus estabelecimentos para, junto com os atores, receberem os espectadores.

Ainda durante o ano de 2012, fomos procurados pela Profa. Dra. Maria Lúcia Pupo (ECA/USP) para sermos o primeiro grupo alvo de uma pesquisa encabeçada por ela em torno de processos contemporâneos de criação teatral e pedagogia, tendo como agência financiadora o CNPQ. A professora conheceu nossas propostas e verificou a pertinência delas dentro de uma perspectiva de um fazer teatral que não dissocia a depuração artística do crescimento do homem, nas palavras da pesquisadora. A Professora Maria Lúcia Pupo nos colocou em contato com a Professora Dra. Béatrice Picon-Vallin, pesquisadora francesa que estava no Brasil à convite da ECA/USP para ministrar uma disciplina na pós-graduação. Picon-Vallin conheceu nosso trabalho, assistiu em vídeo nossas intervenções e resolveu escrever sobre teatro documentário no Brasil, tendo nosso projeto como alvo de análise. Despertamos o interesse da pesquisadora pelo diferencial da proposta. Em 2012, fomos convidados pela Professora Dra. Beatrice Picon Vallin para integrarmos sua futura publicação a respeito de teatro documentário no mundo, na qual representaríamos o Brasil.
Em 2013, a Cia. elaborou o projeto A MORTE na VIDA da grande cidade contemplado pela 23ª Edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. A opção referiu-se à continuidade de nossa pesquisa e, ao mesmo tempo, levamos a uma radicalidade no modo de produção envolvido na construção discursiva. A partir do relato de Francisca sobre as pequenas mortes simbólicas por que passam aqueles que migram, percorremos uma trajetória por lugares específicos da cidade de São Paulo. Uma estação de trem que se tornou apenas lugar de passagem, perto da Cracolândia, espaço onde convivem, os chamados pela mídia, mortos/vivos do crack; o prédio de uma fábrica que foi posto abaixo na cidade que pulveriza sua história arquitetônica; um rio morto; e um cemitério, como outros tantos, isolados do cotidiano de uma metrópole que não pode parar. No fim desse projeto, no intuito de compartilhar as experiências vividas pela Cia. nos últimos anos, lançamos o nosso livro intitulado Uma Escrita Documental: Cia. Teatro Documentário em encontros e perdas nas casas, ruas da Cidade de São Paulo. O lançamento foi na Casa de Dona Yayá. Contribuíram com textos para a publicação do livro, o diretor do grupo alemão Rimini Protokoll, Stefan Kaegi; Beatrice Picon-Vallin, professora da Universidade de Sorbonne; e os professores da ECA/USP, Maria Silvia Betti e Flávio Desgranges. Fruto dessa pesquisa, nasceu o documentário cênico TERRENOS – a Morte na Vida da Grande Cidade contemplado pelo PROAC Produção de Espetáculo em 2015. Fizemos temporada em julho do mesmo ano na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Posteriormente, nos apresentamos em Bauru, Piracicaba, São Carlos e Ribeirão Preto, pelo Circuito TUSP.
Em 2015, fomos contemplados pela quarta vez, pela 26ª Edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Com o próprio incentivo da administração do Serviço Funerário Municipal, o projeto TERRA DE DEITADOS – o cemitério como campo de investigações cênicas documentais sobre a vida e a sobrevida na Cidade de São Paulo objetivou a investigação documental de alguns dos principais cemitérios públicos de São Paulo para flagrar como neles pode ser revelada a vida da metrópole que nunca descansa, que não pode parar. O cemitério, então, foi explorado como um microcosmo da cidade: campo possível para a investigação de temáticas que fujam do macabro e do fantasmagórico e lugar propício para investigações estéticas, tanto no que se refere ao aproveitamento cênico de espaços não convencionais quanto das estratégias para se efetivar a realização de um documentário cênico. As diferentes ações propostas tentavam convidar um número grande de pessoas para ocupar esse espaço público pouco territorializado da cidade. Nesse sentido, pretendeu-se em algum grau alterar fisicamente o retrato da cidade e, sobretudo, o imaginário simbólico de parte de seus habitantes: olhos despercebidos e distantes de quem trabalha e precisa se afastar da terra daqueles que estão mergulhados num profundo descanso. Após a realização de quatro meses de oficinas em site specific com pessoas de áreas diversas (arquitetura, direito, estudantes de teatro, servidores dos cemitérios), a Cia. Teatro Documentário compartilhou publicamente os resultados dessas investigações na Mostra Documenta SP. O evento ocorreu paralelamente nos cemitérios públicos do Araçá, da Quarta Parada, da Vila Mariana e da Vila Formosa, dentro dos quais se produziram diferentes discursos artísticos: Aqui não – Sobre a necessidade de enterrar os Mortos, com direção de Carolina Angrisani; O Sustento da Saudade: Documentário Cênico sobre o Cemitério da Quarta Parada, com direção de Gustavo Curado; Ciao, com direção de Marcelo Soler e Clandestino: Documentário Cênico sobre o Arquivo Morto, com direção de Márcio Rossi. Com o material prático e conceitual gestado, numa perspectiva de site specific, encenamos dentro do cemitério Vila Mariana a trajetória de João, operário morto em um acidente de trabalho. Para ficar em silêncio sobre o acidente, a família de João ganhou um jazigo do patrão na necrópole em questão. Entre as cenas, que por meio de acontecimentos cênicos trazem a memória da viúva Francisca sobre o episódio, surgem os trabalhadores do cemitério, ajudando os atores com a comunicação teatral ao utilizarem recursos de seu próprio trabalho (um sepultador, por exemplo, dirige um carrinho, usado para levar familiares aos sepultamentos, como se fosse o trem que levou Francisca, João e as crianças de Gavião Peixoto a São Paulo). A plateia é convidada a perfazer o caminho da administração da necrópole até o jazigo da família de João. Iniciaram-se as apresentações de TERRA DE DEITADOS, que ganharam, inclusive, a atenção de críticos como o professor da USP, Ferdinando Martins: “(…) É uma obra que se aprende com o que não se torna palavra. O que vale a pena é entrar no jogo que se inicia antes mesmo da peça começar. Descendo as ruas tortas do cemitério, descobrindo e se deslumbrando com o que está ali, o corpo e a cidade tornam-se veículos para uma transcendência que não precisa ser religiosa para ser transformadora. Expiação que também é política, Terra de Deitados é um encontro de vida”. Devido à significativa repercussão, uma nova temporada da encenação foi realizada em novembro de 2016 no Cemitério da Vila Mariana.
